*Texto escrito a quatro mãos por Matheus Pichonelli e Fernando Vives
Bons jogadores surgem todos os anos. Só alguns viram ídolos. Desde o
começo dos anos 90, quando fomos picados pela praga do futebol, vimos
nascer muitos craques (e muitos tantos se perderem).
Na ordem: Raí (irmão de Sócrates), Edmundo, Rivaldo, Edílson,
Ronadinho (hoje Ronaldo), Amoroso, Marcelinho Carioca, Giovani, Rogério
Ceni, Luis Fabiano, Alex, Ronaldinho (o Gaúcho), Kaká, Robinho, Adriano,
Fred, Kleber, Ganso e, agora, Neymar.
Desses, alguns já deixaram de jogar, e poucos, a muito custo (e com o
devido distanciamento temporal), ainda podem ser chamados de craques.
Entre todos eles, e tantos que não dá nem para citar, poucos podemos
dizer que são, de fato, especiais, revolucionários, exemplares.
Engajados, então…
Mesmo com o selo de embaixadores de entidades como a Unicef ou órgãos
representativos (como a CBF…) ao longo ou ao fim da carreira, nenhum
desses jogadores teve leitura melhor de seu esporte, de seu tempo e de
seu País do que Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira,
morto na madrugada deste domingo 4.
Não, não vimos Doutor Sócrates em campo. Nós, que ainda não chegamos
aos 30, dele sabemos apenas dos melhores momentos, pela tevê, de uma
Copa que se acabava quando mal tínhamos nascido – e que foi a prova de
que não é preciso ser campeão para ser inesquecível. Uma seleção em que
Sócrates era maestro e referência.
Fora de campo, nenhum ex-jogador foi tão presente como ele. Pelé
virou garoto-propaganda (poucas vezes o vimos falar algo que não fosse
ensaiado, escrito anteriormente para campanhas para a educação ou
disfunção sexual); Garrincha morreu novo, sem deixar grandes reflexões
sobre seu ofício; Rivelino e Falcão, ambos acima da média, viraram
comentaristas (um já se arriscou como dirigente e outro, como
treinador).
Zico virou boa-gente, daqueles que se pode ficar a tarde toda falando
sobre o mundo da bola, o Rio, o Japão, os bastidores da Copa, a relação
com a torcida. É diferenciado.
E Romário começa a mudar paradigmas, com uma atuação implacável como deputado federal eleito pelo Rio.
E paramos aqui. Quem não sumiu (ou se omitiu), anda por aí fazendo o
elogio da ignorância no papel de arrivista de primeira linha – daqueles
que se infiltram entre os boleiros para desfilar preconceitos ao vivo na
tevê. Um certo ex-meio-campo que virou comentarista é talvez o maior
exemplo deles, uma espécie de porta-voz de atletas mimados, pipoqueiros,
vazios e malcriados.
Mas Sócrates era outra coisa. Ninguém tinha tanto a falar sobre o
mundo em que viveu e o mundo que deixaria como herança – um mundo um
pouco melhor do que o seu, mais aberto, mais democrático. Tão
democrático que, quando soube que precisaria de um transplante de fígado
para se curar, lembrou, a quem quisesse ouvir, que era um cidadão como
qualquer outro. E que, portanto, deveria esperar sua vez, na fila para
doação, como qualquer brasileiro – sem privilégios, lobbies, choros ou
vela..
Sócrates chamava a atenção desde as categorias de base de seu
Botafogo, de Ribeirão Preto. Destacava-se dentro das quatro linhas, e
chamava a atenção dos repórteres que o viam em alguma preliminar dos
juniores. Quando alguém demonstrava admiração pelo seu futebol, os
repórteres da região que já o conheciam avisavam: “E olhe que ele não
tem tanto tempo para treinar. É estudante de medicina”.
As condições sociais, as pressões, os compromissos dentro e fora de
campo tornam quase uma covardia dizer que, como Sócrates, todos deveriam
ter as mesmas referências, os mesmos estudos, a mesma base, a mesma
formação.
Ele fez a escolha pela bola, e a maioria, não.
É fato que poucos corintianos seriam capazes de deixá-lo fora de uma
seleção dos melhores jogadores de todos os tempos. Mas, diferentemente
da maioria, a bola para ele nunca foi uma ponte apenas para o sucesso, a
fama, a idolatria.
A bola, para Sócrates, foi uma espécie de palanque que lhe permitiu
compartilhar ideias, críticas, indignação verdadeira com o estado das
coisas.
Quem se não ele? Dotado de uma inteligência que, no meio-campo,
permitia ver espaços e jogadas que ninguém mais via, com a rapidez que
só os gênios da bola dominam, Sócrates era também um visionário das
brechas de seu tempo, de sua história. Uma história da qual sempre foi
sujeito ativo. Coragem para isso não lhe faltou.
E é essa imagem que levamos dele. Brilhar pode não ser fácil. Mesmo
assim, muitos brilharam, muitos driblaram, muitos marcaram gols
antológicos e correram para a torcida.
Ao fim do jogo, o que disseram para toda essa gente de pé, que
aplaude e vaia (e ouve)? Que espetem seus cabelos à moicano? Que usem
faixas na testa? Que comprem o maior número de carros importados para
apagar qualquer resquício das origens humildes?
Ou que rasguem bandeiras, pensem e lutem por um mundo melhor, menos
desigual, mais humano? E dialoguem de igual para igual com cartolas
(muitos ainda são déspotas, esclarecidos ou não), jornalistas, poder
público?
De Sócrates não haverá grande jogada, gol ou vibração que se compare
com a sua postura, coerência, engajamento e inteligência fora de campo.
O mundo seria melhor se houvesse dois Sócrates a cada século.
Fonte: cartacapital.com.br