No Brasil,
três coisas são indiscutivelmente democráticas. A praia, que debaixo de
um sol junta madame e funkeira trajadas no mesmo uniforme. O futebol,
que une o ladrão e o padre numa imensa fraternidade. E o trânsito, que
bota o Zé do Chevete e João do Jaguar lado a lado, paralisados pela
mesma encrenca. Das três brasilidades, o futebol é a que mais me
intriga.
Tenho um namorado que ama a bola.
É uma pessoa cheia de virtudes, mas, se há uma constância em seu
caráter, esta é a impontualidade. Não consegue chegar na hora, o mundo o
atrapalha, a menos é claro no caso do futebol. Não falo aqui daquele
jogo no estádio com hora oficial para começar, refiro-me à pelada, ao
racha, àquele bate-bola entre amigos, que no caso aqui de casa acontece
três vezes por semana. O campo é longe, uma viagem, o sol a pino - não
importa. Dia do compromisso logo cedo o moço fica ansioso, não pode
atrasar e não há imprevisto que o segure. Nesses dias meu amor é um
britânico!
Sábado desses resolvi acompanhá-lo. Os companheiros de partida, esbeltos
desportistas, não gostaram nadinha, mas, gentis, fizeram que sim.
Aquilo não é lugar de mulher, eu já devia saber. Para compensar o
mal-estar, começa o jogo e eu bato muita palma, exagero o entusiasmo,
assovio e tanto faço que o dono do campo a quem eu bajulava
escancaradamente sentiu-se na obrigação de me dedicar um gol. Segue o
embate com altos e baixos, a coisa aquece e pimba... um golaço, aquele
chutão do meio do campo para dentro da rede à Roberto Carlos. As
más-línguas desmerecendo o artilheiro dizem que o momento é histórico e
não se repetirá - não acredito, foi jogada de mestre; vi e guardarei na
memória. Continua a partida com bons momentos, outros nem tanto, uma
contusão aqui, uma falta ali, um corpo caído no chão. De repente me bate
uma estranheza e vou percebendo que acima da bola, das jogadas, do
corre para lá e para cá, o que mais se via, na verdade, eram discussões,
ofensas, xingamentos e uma roubalheira de fazer corar um palmito. A
coisa chegou a um ponto em que tive a certeza de que terminado aquilo os
adversários não voltariam a se falar. Acaba o jogo. Entre vitórias e
desilusões, corre-se para o vestiário e devo dizer que nem na feira
fala-se tão alto e ao mesmo tempo quanto num banheiro cheio de homens;
eu não estava dentro, mas nem precisava... Fiquei quietinha do lado de
fora esperando meu namorado, que, pela delonga, tomava um banho de
Cleópatra. Assim, pude observar bem os outros rapazes que sorridentes e
limpinhos iam saindo do vestiário qual amigos de infância. Aqueles
mesmos que há pouco se juravam de morte agora pavoneavam-se uns para os
outros aos tapinhas nas costas. Havia ali cantores-compositores, um
sapateiro, o editor de um jornal, um empresário da música, atores, um
jogador aposentado, dois médicos e alguns moços das redondezas
empobrecidas cuja competência em campo desequilibrara o jogo - tudo
adversário de sangue na hora da bola e amigo do peito na saída para o
chope. Na pelada não há rancores, o que se passa em campo fica no campo.
Nem pudores, ali são todos craques - o vírus da imodéstia ataca
democraticamente. Uma beleza!
Fui-me embora com um vazio a futucar o espírito. O
que nós, mulheres, temos de parecido, o shopping, o salão? Nem chegam
perto. Não pode xingar, espernear, soltar os sapos da garganta - além do
que, num e noutro, o máximo de exercício que se faz é com a língua na
futrica da vida alheia - muito chato. Não havia como negar, o brinquedo
dos rapazes é divertido como só, e meu vazio era de inveja.
Nós, mulheres, não temos nada que se compare.
Nós, mulheres, não temos nada que se compare.
Fonte: amigosdodemocrata.blogspot